segunda-feira, 23 de abril de 2012

APRESENTAÇÃO DO LIVRO «RIMAS E CASTANHOLAS» POR SARA REIS DA SILVA


Partilhamos convosco as palavras de Sara Reis da Silva na apresentação do livro «Rimas e Castanholas», de José António Franco e Rui Pedro Lourenço, no passado dia 20 de Abril, na Casa da Cultura de Coimbra.

No posfácio de Primeiro Livro de Poesia (texto que nunca me furto a citar, porque considero que representa um mini-tratado de pedagogia da poesia), nesse posfácio, escreve Sophia:

«(…) Espero que estes poemas sejam lidos em voz alta, pois a poesia é oralidade. Toda a sua construção, as suas rimas, os jogos de sons, a melopeia, a síntese, a repetição, o ritmo, o número se destinam à dicção oral.
A poesia é a continuação da tradição oral. E é a mestra da fala: quem, ao dizer um poema, salta uma sílaba, tropeça, como quem ao subir uma escada falha um degrau. (…)
E é importante aprender o poema de cor, pois o poema decorado fica connosco e vai-nos revelando melhor, sempre que o repetimos, o seu sentido e a beleza da sua linguagem e da sua construção» (Andresen, 1999: 186).

Os textos poéticos que compõem a colectânea de José António Franco agora publicada, nascidos da criatividade de um poeta que não nasceu hoje nem ontem, mas que há muito se dedica à escrita poética e, também, à reflexão acerca das possibilidades de aproximação desta dos leitores , estes poemas, dizia, evidenciam uma forte ligação à tradição oral. Na verdade, esta tem representado, não só na poesia de José António Franco, como também, genericamente, na poesia de outros autores que têm a criança como destinatário preferencial da sua escrita , uma das mais recorrentes linhas matriciais, representada nas importantes vozes de Maria Alberta Menéres, Eugénio de Andrade, Vergílio Alberto Vieira, Matilde Rosa Araújo, Luísa Ducla Soares, Mário Castrim, Violeta Figueiredo, José Jorge Letria e, mais recentemente, Maria da Conceição Vicente ou João Manuel Ribeiro, apenas para citar alguns exemplos.       
Como constatámos já em Versos de Respirar (Calendário de Letras, 2009) e, ainda, em certos textos de José António Franco que integram a antologia poética Verso a Verso (Trinta por uma Linha, 2009), também nos cerca de vinte poemas de Rimas e Castanholas é possível distinguir vestígios da influência dessas rimas infantis, apelidadas por Maria José Costa como “Um Continente Poético Esquecido” , tão do agrado, aliás, das crianças (e não só). O recurso a sequências de numeração progressiva – como em “um passo de cada vez” – dá conta de uma criatividade poética gémea das lengalengas. E esquemas aliterativos ou de repetição de fonemas, por exemplo, aproximam alguns dos textos de José António Franco dos trava-línguas, uma das formas poético-líricas da tradição oral que mais risos e embaraços provoca, porque, como se sabe, por vezes, nos entaramelam a língua que, com dificuldade, procuramos domesticar. É o que se observa, por exemplo, no poema “faço figas”:

“faço figas
frito favas
forço ferros
finjo fumos

finas fragas
falcões feios
fracos folhos
frescas feiras

fitas fervo
faunos forjo
freto filas
franzo folhas

(…)” (Franco, 2012: s/p).

Neste, como em outros poemas da colectânea em apreço, o ritmo cadenciado (neste caso concreto, binário), decorrente do paralelismo de construção e, muito especialmente, da adição de dois termos pertencentes a diferentes classes gramaticais (forma verbal + substantivo/nome; adjectivo + substantivo/nome), parece convidar a uma verbalização animada, compassada, até, e acompanhada, por exemplo, do código gestual. Aliás, é o próprio título, pela associação dos vocábulos “Rimas e Castanholas”, que, anunciando o contéudo poético da compilação, sugere simultaneamente o jogo com a linguagem que se celebrará e, mais concretamente, um ritmo e uma musicalidade muito conhecidas.
Na verdade, a expressividade deste registo marcadamente sensorial, materializado nas referidas sugestões auditivas/sonoras, surge também substantivado em versos com vocábulos onomatopaicos (como no poema “trilorilá”, por exemplo), bem como em certos segmentos sinestésicos, ou nos quais se aliam diferentes sentidos (audição+ olfacto + visão), como sucede, por exemplo, no seguinte poema:

“ó grilo canta mais alto
o teu canto cheira a verde
e é doce como o verão

mais alto senhor grilo
eu quero sonhar tranquilo
e o escuro atrevido
a mordiscar-me os pés
não me vai deixar dormir” (idem, ibidem: s/p).

Neste, como, num número considerável dos restantes cerca de vinte poemas, sem titulação, todos grafados a letras minúsculas e sem pontuação, que podemos encontrar em Rimas e Castanholas, a figura animal, um grilo, é transformada em protagonista, parecendo intergir com o sujeito poético. Efectivamente, nesta espécie de animalário, povoado por bichos que agem, que se vestem e que falam como os homens, incluem-se corvos convencidos, pardais que tropeçam e partem o bico, pardais de bicicleta, cães a tocar violino, cobras vaidosas, galinhas de bigode, perdizes que esmurram o nariz e gatos, muitos gatos, um conjunto de personagens que alimentam um discurso marcadamente humorístico, decorrente dos três tipos de cómico (de carácter, de situação e de linguagem) e, em especial, do nonsense e/ou absurdo.
Comum também a vários poemas são as marcas de narratividade ou o “ensaio” de pequenas/micronarrativas, como sucede em “torta mas mesmo tão torta” ou, até mesmo, em “o lobo mau rinhaunhau”. É, aliás, neste último, um brevíssimo texto no qual surge recriado poeticamente o conto clássico do Capuchinho Vermelho, que um outro aspecto singularizador dos poemas de Rimas e Castanholas ganha particular forma e sentido. Trata-se de uma multiplicidade de alusões intertextuais, patentes, por exemplo, em “velha chocarreira” (3º poema) – gato das botas e patinho feio – que estimulam o leitor destes textos.
As ilustrações, a partir de uma técnica mista, sustentada pelo recorte e colagem e pelo desenho, por exemplo, procuram seguir o trilho ideotemático da generalidade dos poemas. A componente visual reforça, assim, notas como o som ou a música em potência – note-se que, nesta, se espalham inúmeros segmentos de pautas musicais, disseminados, até, por espaços improváveis (como o corpo de gatos ou uma panela, por exemplo) –, recria a forte presença animal que pontua os poemas da colectânea, além de dar conta também dos gestos da infância e do dinamismo que a caracteriza.  

Para terminar, peço emprestadas algumas palavras a Jean-Claude Pinson:

“Na verdade, é numa espécie de entre-dois, a meio caminho entre a inteligência de um sentido e a sensibilidade às formas verbais, onde se dá a hesitação entre sentido e som, que se abre a onda do poema. Ao solicitar, mais do que a nossa inteligência narrativa, uma compreensão que se poderá dizer «afectiva», o poema lança as suas palavras como outras tantas sondas, em direcção aos fundamentos mais recônditos da nossa presença sensível no mundo.” (Pinson, 2011: 30).
E essa “virtude tonificante da poesia para a existência” (Pinson, 2011: 31), de que fala Jean-Claude Pinson, no caso particular da poesia de José António Franco, em Rimas e Castanholas, possui como raiz a possibilidade inestimável de estar muito próximo da infância, da sua inteligência, das suas emoções, dos seus discursos, do seu olhar incomparável de ver o mundo.

E, já agora, “senhor professor/ para onde vão os poetas / quando acabam os poemas”? (idem, ibidem: s/p).